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sexta-feira, 9 de março de 2012

Cega

Ontem, depois de mais ou menos meia hora do início da aula de Introdução aos Estudos Literários, Entrou na sala, uma aluna atrasada. Coisa normal, muitos outros que estavam atrasados tinham acabado de entrar, pegar os poemas que o professor lhes entregou e se sentar. Mas ela chegou com sua mãe, que lhe abriu a porta e só então foi embora. Não, ela não é filhinha de papai e mamãe, e que todos tem que lhe fazer as vontades! Entretanto, descobrimos isso mais tarde.
Ela entrou, e passou reto pela mão do professor que estava estendida com a folha dos poemas. Então ele começou a chamar por ela: "Moça, os poemas! Moça? Moça, aqui, atrás de você!" Ela percebeu que fizera algo errado, mas não sabia o quê. Ficou dando voltas, como se para ouvir melhor ou ver de onde vinha a voz.E as pessoas que estavam ao seu lado a ajudaram, um rapaz cedeu seu lugar a ela, foi até a mesa do professor, pegou a folha com os poemas e lhe entregou.
A aula prosseguiu como se não houvesse sido interrompida.
Mas acho que devo chegar logo no ponto que me irritou: enquanto a garota estava lá, dando voltas, tentando se achar, as pessoas em volta dela a estavam ajudando e virando-a para o lado certo. Mas a cada vez que alguém a tocava, ela virava para o lado da pessoa e não para a frente. E a cena foi tão perturbadoramente engraçada. A garota virou um jokey, como é que se diz?, boba da corte? Isso aí. Ela virou a boba da corte da sala inteira, todos começaram a rir e eu só sabia olhar para ela procurando com todas as forças encontrar o caminho certo para o seu próprio futuro. Sei que isso saiu meio poético, mas eu vi desse modo. E tive a impressão que o que aconteceu foi apenas uma amostra grátis da sua vida inteira. Uma vida incompreendida. E enquanto os outros riam, eu olhava para ela, desesperada ela, desesperada eu, sem saber o que fazer para ajudar. Eu olhei para o professor e ele estava com uma expressão estranha, um misto de confusão, divertimento e desespero, também sem saber o que fazer. Ah, ele ainda estava com o braço esticado, como se esperasse que de em um dado momento ela parasse e dissesse: "Brincadeirinha! Passa pra cá essa folha!".
Então percebi que ela estava sozinha e eu estava sozinha pensando tudo isso que acabei de escrever. E eu simplesmente não sabia o que fazer!
Estava quase levantando e puxando-a pela mão, levando-a para o assento ao lado do meu, quando ela finalmente se pronunciou: "Me ajuda, sou cega".
Vou confessar (de novo... acho que o nome do blog devia ser "Confissões da Natália") que eu não sei se ela realmente disse isso ou se foi uma voz que eu criei, na minha cabeça e fiz sair da boca dela.
Sei apenas que assim que ela falou, o tal rapaz levantou e a colocou no lugar dele.
Mas ela estava enganada. Ela não é cega. Nós que estávamos sentados, parados, sem nada fazer, somos cegos. Ela sabe muito bem quem é, como é, o que é.
Nós apenas sabemos que enxergamos, ouvimos, falamos, andamos. Não sabemos o que fazer com todos esses atributos.
Mas ela, ainda que perdida, sem visão e audição, sabe pedir ajuda, sabe caminhar para onde se quer chegar. Ela sabe onde fica o lugar que ela quer, sabe que tem que chegar lá, sabe que vai chegar lá e sabe como vai chegar lá. E sabe também que existirão pessoas como todos nós, que irão rir das suas vontades, enquanto ela, sem ao menos perceber, ou fingir não perceber, seguirá de braços dados com sua vida, passará a lebre e chegará em primeiro lugar pela linha de chegada.
Bem simples assim.
Talvez eu não saiba. Mas foi só isso que aconteceu essa semana na USP.

Sabe, que de repente, eu senti uma vontade de voltar no tempo e continuar na UFSCar e fazer o curso de Educação Especial?

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