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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Alguma Parte Alguma

Hoje tive a oportunidade de ver, ouvir, sentir e acreditar em Ferreira Gullar.
Explico: o SESC-SP de São José dos Campos abriu um espaço para os alunos do Colégio Embraer Juarez Wanderley (apenas para nós!) para que Ferreira Gullar conversasse conoso, contasse de sua carreira e o que mais aparecesse durante esse tempo.
Mas a história não ficaria completa se eu não contasse toda a epopéia presente por trás dos cinquenta minutos que ficamos no auditório apenas ouvindo-o.
Lá vai: para quem não conhece o Colégio Embraer Juarez Wanderley, este é um colégio de período integral, recebemos alimentação e hoje em especial, nós, alunos do terceiro ano almoçamos mais cedo (onze e meia da manhã) para que saíssemos meio-dia e meia do colégio e podermos chegar antes da uma e meia no SESC (o colégio fica em uma área um pouco distante do centro da cidade e esse seria o horário que começaria o programa).
Pois bem. Chegamos no SESC com um bom tempo de antecedência e ficamos sabendo que houve uma pequena falha na comunicação entre o colégio e a direção do SESC: a conversa só começaria às três e meia da tarde e o horário foi avisado três vezes ao colégio. Nossa sorte, é que o SESC fica do lado do Parque Santos Dumont (aliás, quando você vier visitar São José dos Campos, este parque é um local que você deverá visitar), portanto ficamos andando e conversando pelo parque.
Entretanto, as horas iam passando e a fome apertava, porque caso você se lembre, e você irá se lembrar, nós almoçamos às onze e meia da manhã e já eram três da tarde! Os professores que foram conosco juntaram os seus trocados, que imagino não serem poucos, e compraram refrigerante, pão e mortadela e fizemos um lanche comunitário no parque! Imagine só: aproximadamente duzentos adolescentes esfomeados comendo! Num parque! É realmente uma cena rara.
Comendo, o tempo passou mais rápido e fomos, finalmente, para o SESC.
Ah, meu Deus! Sentamos, eu e minhas amigas, na primeira fileira. Deixamos um banco vazio na ponta e nos apossamos dos outros. Mas nem mesmo eu que tenho uma imaginação muito fértil não imaginava Ferreira Gullar sentando ali naquela cadeira que deixamos vazia. Sim, ele se sentou ali, no lado da minha amiga. E eu do lado dela! Sem brincadeira, a primeira coisa que eu fiz foi rir! Foi rindo que  me veio à mente: "Ferreira Gullar está sentado do lado da Viviane, e eu ao lado dela. Meu Deus, ele existe mesmo!"
Ah, querido leitor, se eu contar você não acredita. Mas juro que é verdade: ele estava usando All Star!
Ele é tão simples, tão vivo, com oitenta e um anos para contar se você deixar. Porque simplesmente parece que ele soube viver cada ano da sua vida.
Contou um pouco da sua infância, como descobriu que escrever seria o que ele faria da vida, dos amigos... Mas os amigos merecem um parágrafo à parte.
Pois bem, vamos ao parágrafo (isso foi meio Machado de Assis, né?)
O apelido dele era Periquito! Um dos amigos dele se "chamava" Esmagado e o outro Espírito da Garagem da Bosta (você não leu errado! Mas a história do apelido é coisa para ele mesmo contar...).
Contou como foi apaixonado por uma russa ruiva, menina branca como a neve, a quem escreveu "Cantiga para não morrer".
Ouví-lo é tão hipnotizante e cheio de mensagens que eu acabei me arrependendo de não ter levado algo para não anotar. Mas eu consegui resgatar algumas frases ditas por ele, e repasso a você:

A vida é intraduzível
A arte existe porque a vida não basta
A vida é acaso e necessidade
A teoria é fácil, a arte é diferente (quando falou do manifesto concretista)
Depois de tudo o que eu ouvi dele hoje, não me pareceu nem parece loucura querer um fio de cabelo dele que estava caído na cadeira que ele sentou no palco do auditório... (desculpa, comentário perdido).
No final dos cinquenta minutos, quando o tempo já havia estourado, começamos a fazer perguntas. A última pergunta, para fechar o evento com chave de ouro (para nós, para ele acho que foi um castigo. Ou um espanto) foi a seguinte: O que foi Clarice Lispector pra você?
Meu Deus, o auditório caiu num silêncio profundo! Cada um se mutilou por dentro, tamanho arrependimento da pergunta feita. Ele perguntou qual foi a pergunta. Repetiram. Novo silêncio. Perguntaram se ele não iriam responder. Como eu vou responder se não fizeram pergunta alguma? O que foi Clarice pra você?, repetiram. Ele perguntou se foi essa pergunta mesmo, se ele não ouviu errado. Repetiram novamente. E ele respondeu a pergunta.
Contou que era amigo dela. Que ela o chamava constantemente para ir à casa dela. E a mulher dele começou a desconfiar, embora não se manifestasse muito explicitamente nesse sentido. Mas como a esposa dele era fã de Clarice e possuia todos os livros dela, disse que com a Clarice ela deixava. Não precisa explicar, né? Quando a Clarice adoeceu e foi internada, ele tinha licença para ir visitá-la sempre que quisesse, sem depender de horário de visitas. Não chegou a visitá-la, porque ela o impediu. Não queria que ele a visse transfigurada. Morreu. Gullar recebeu a noticia ainda em casa, esperando o táxi que o levaria ao aeroporto. Dia lindo. A natureza não tomou conhecimento de nós, disse ele. Por isso não se entristeceu como ele com a morte da Clarisse. E como não podia deixar de ser, ele escreveu um poema para ela.
Parou de repente de falar. Seus olhos lacrimejaram e ele deu uma risada para disfarçar.
Nunca houve nada mais que a amizade entre ele e a Clarice. Se é que nada se pode chamar uma paixão.
E isso foi o que eu consegui absorver de João Ribamar Ferreira. Também Ferreira Gullar.

Enquanto eu escrevo, ele está no SESC, palestrando sobre o concretismo, neoconcretismo e a arte. Como ainda vivo debaixo das asas dos meus pais, pedi para ir e recebi a permissão do meu pai. Mas sem antes ele me lembrar que a palestra irá terminar tarde e que sábado e domingo eu tenho ENEM. Traduzindo: o ENEM está acabando com a minha vida e retirando de mim tudo o que eu mais amo.
Mas o alto preço vale a pena. Ano que vem, quando eu estiver cursando letras, eu vou lembrar que valeu a pena. Até porque eu vou ter a chance de conhecer mais e mais de Ferreira Gullar. Esse alguém que me ensinou um pouquniho mais sobre o que é viver. Tudo em míseros cinquenta minutos.

Acredita que fiquei assim frente a frente com ele?


Para quem não conhece:

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

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